segunda-feira, 23 de março de 2009

Contos de Mary Blaigdfield – a mulher que não queria falar sobre o Kentucky (parte V)

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Cabelo novo. O visual ficou um pouco diferente. Para melhor, é claro. Mais feminina. Mas para isso teve de aturar três horas naquele lugar. Conversas que não a entretinham rondavam por todas as partes. Muitos olhos se entreolhavam nos espelhos. Um odor desagradável de cabelo queimado tomava conta do local. Gritinhos, barulho de secador, fofocas!

Aquele lugar não tinha nada a ver com ela — não tinha paciência com esses assuntos. Nem paciência, nem tempo. Era uma questão de prioridades. Todo o projeto estava em risco! Segredos inimagináveis estavam para ser revelados! Um grande pesadelo... E, no meio de toda a confusão, de todos os estresses dos últimos dias, ela ainda havia arrumado um espaço para ele na sua agenda.

— Corolla branco. É o da senhora?
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— Sim, obrigada.

Mary Blaigdfield pegou o carro e pôs-se a caminho do local combinado. Dirigia com cuidado, pois suas unhas ainda não haviam secado. Sorte o carro ser automático, pois ela não dirigia muito bem. Afinal, ela não entendia nada sobre carros.

Sinal vermelho. Oportunidade para se olhar no espelho. A franja estava mais clara do que o resto do cabelo. “Que idéia foi essa de franja?” — pensou, irritada. Ela tentou, mas foi incapaz de se recordar de uma vez sequer que tenha saído do salão satisfeita.
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Dirigindo por mais alguns minutos, refletiu sobre todos os acontecimentos, uma coisa acontecendo por cima da outra. Isso gerava uma angústia muito grande.
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Finalmente chegou ao prédio de Henri Havengard, que a esperava com um pequeno buquê de flores sob o braço esquerdo, junto ao corpo.

“Ah, Henri... Flores... O mesmo Henri de sempre...” — o coração de Mary se rendeu aos eternos encantos de um antigo amor. Todas as barreiras desmoronaram com aquele singelo gesto de delicadeza.

Parou o carro rente ao meio-fio para que Henri entrasse. Ele abriu a porta e, com um largo sorriso, sentou-se no banco do carona.

— Isto é para você, a mulher mais encantadora de todo o leste!

— Oh Henri! Não preci... — foi interrompida. Oh, meu Deus, o que era aquilo? Flores roxas! A botânica já vinha usando Mendolatium para a produção de novas flores havia algum tempo, mas mesmo assim ela se assustou — Henri acabou notando seu espanto.

— O que houve? Há algo de errado?

— Não — disse tentando parecer mais calma. — É que... Sou alérgica...

— É alérgica a flores? Não me lembrava disso.

— Não, não. A Mendolatium... Essas flores são produzidas a partir da mutação ao Mendolatium.

— Alérgica a Mendolatium? Desculpe... É que nunca imaginei que algo assim fosse possível. Você sabe, eles dizem por toda parte que...

— Eu sei, Henri. Eu sei o que eles dizem. Vamos deixar essas flores de lado e sair. Isso não é motivo para maiores aborrecimentos. — Mentira. Mary passaria o resto da noite aflita. Henri ressurgiu de muito longe no passado, e isso era magnífico. Mas com ele vinha o Mendolatium, que por sua vez a remetia ao Projeto, aos problemas, ao...

Aquele fluxo de idéias não poderia continuar. “Não nesta noite!” Ela precisava se controlar, respirar fundo e devagar. Era Henri que estava em jogo dessa vez.

— Pronto. Problema resolvido! — disse o sempre simpático homem, fechando a sua janela logo após ter jogado as flores para fora do carro. — Nada de Mendolatium da próxima vez!
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“Oh, Henri, por favor, pare de pronunciar essa palavra...” — pensou, esboçando um falso sorriso pela piada.

— E para onde vamos? — Ela perguntou, mudando de assunto.

— Eu fiz uma reserva para nós no Côté D´Olegan Bistrô. Aposto que devem ter muitas opções sem Mendolatium — disse sorridente, repetindo a piada.

“Henri, chega, por favor...” — pensou, agora se esforçando ainda menos pelo sorriso.

— Então vamos. — disse, dando a partida, antes que ele começasse a pensar em uma nova frase com a palavra Mendolatium.

Ela dirigia nervosa. O silêncio estava começando a se tornar um incômodo; aumentou um pouco o som, que tocava algum sucesso dos anos 70 (Não queria saber do passado). Foi Henri que quebrou o silêncio.

— E então, em que trabalha atualmente? Ainda confecciona jóias?

“Henri, Henri, será que você não dá uma dentro?”

Como ela falaria sobre seu trabalho? Que pergunta!! Parecia que Henri estava fazendo de propósito, alfinetando-a a cada fala. — mas não podia ser verdade. Só de imaginar que Henri poderia saber de algo já enfraquecia todo o seu corpo, fazendo-o tremer. Como ele poderia ter descoberto alguma coisa? Seria esse o real motivo do encontro? Ele estaria envolvido? Ela podia se lembrar de já ter conversado sobre ele com Larie, mas... Ela não sabia mais em quem podia confiar.

— Ultimamente não tenho trabalhado em nada; tirei uns dias pra mim mesma...

— Entendo. Eu continuo na mesma. Os negócios melhoraram por lá. Tio Ben pretende transformar a fazenda em um parque ecológico. Já imaginou aquele lugar repleto de crianças, de animais. Assim como um Jardim Zoológico. Já imaginou Mary? Um Jardim Zoológico?

“Não é possível! Não, Não, Não” — pensou. Coincidência ou não, cada assunto que Henri colocava em pauta era um trauma com o qual Mary teria que lidar em questões de segundos, antes de dar uma resposta ao menos aceitável. Improvável ele saber do incidente do Jardim Zoológico! Mas por que ela estava sendo obrigada a lidar com tudo aquilo novamente?

— Eu estive em um há pouco tempo. — pausa — Você pode me passar a minha bolsa, que está no banco de trás? Preciso de um cigarro...

— Você voltou a fumar? — perguntou Henri, surpreso, enquanto lhe entregava a bolsa.

— Há alguns dias. Tenho passado por momentos um pouco turbulentos.
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— Problemas?
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— De certa forma... Henri, querido, podemos ficar calados enquanto fumo esse cigarro?
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— Ahn? Claro. — respondeu ele, achando que havia errado em algo que havia dito. Não sabia ele que havia errado em tudo!
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Mary Blaigdfield abriu sua janela e acendeu o cigarro, tentando se acalmar. Henri Havengard não desviava o olhar. Ele estava com um certo ar de bobo, como de um cachorro que não entende o que fez de errado para desagradar o dono. Aqueles maravilhosos buracos no jardim não haviam agradado?
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Mary pensou muito, e sobre muitas coisas durante esse cigarro. Poderia ele realmente saber de tudo? Não seria a hora de largar tudo e fugir para algum país distante? Mas ela não era uma criminosa — Fora obrigada a participar daquilo tudo contra a sua vontade.
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E esse sujeito, com cara de idiota, que retornou do passado para lhe fazer toda a lista de perguntas inoportunas que somente as entidades divinas poderiam ter formulado!
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Em meio àquele silêncio — que em situações normais seria desconfortável, mas que para ela era a certeza da tranqüilidade — se podia ouvir somente algum hit dos 70 ao fundo, vindo das caixas de som do banco traseiro.
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De repente, Mary se desesperou ao ver que o filtro do cigarro estava próximo, e com ele chegaria a inevitável pergunta de Henri. Ela deu o último trago e jogou o cigarro pela janela.
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Henri se prepara para dizer algo.
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As mãos de Mary tremem ao volante. Ela já sabe o que ele vai dizer. “Oh não, não hoje...”
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— Mary...
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“Não pode estar acontecendo de novo...”
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— Mary, eu sei...
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“É impossível, é impossível. Hoje não, eu imploro...”
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— ... o que você fez...
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"Não pode ser..."
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— ... no cabelo! É essa franja! Eu estava reparando que ela está mais clara que o resto do seu cabelo. Você já usa esse penteado há muito tempo?
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Ufa, Mary! Essa foi por pouco, hein?
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Ela é Mary Blaigdfield, e ela não que falar sobre o... Sobre o... Vocês já entenderam.
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sábado, 21 de março de 2009

Contos de Mary Blaigdfield – a mulher que não queria falar sobre o Kentucky (parte IV)

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A Dra. Sofia era realmente uma pessoa sofisticadíssima. Seu consultório parecia decorado de tal maneira que o paciente se sentia compelido a falar, a se abrir, a trabalhar as lembranças e emoções de forma tal, que o resultado era sempre revelador. Ela deve seguir o Feng Chui, ou alguma outra filosofia milenar de arrumação de móveis, pensava Mary Blaigdfield recostada no divã. A escolha dos quadros, das cores, o elefantinho com o traseiro para a porta, a abundância de flores, tudo parecia escolhido a dedo.
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Sim, finalmente Mary Blaigdfield aceitara que precisava de ajuda, qualquer tipo de ajuda. Todos haviam insistido muito que era necessário se tratar. Ela ainda podia lembrar-se de Larie Bofferman em sua sala como se estivesse acontecendo agora mesmo, seu rosto listrado de sobra e luz pela persiana: “A psiquiatra será totalmente paga pelo projeto, não se preocupe. Tentarei enquadrar você no caso dos feridos de guerra. Você sabe, Mary, com todos os benefícios que isso poderá representar para a sua aposentadoria...” Eles estavam insistindo para que ela se aposentasse! Mary, entendeu logo o que estava se passando e aceitou jogar o jogo deles. Era o melhor a fazer, até porque, ninguém melhor do que ela sabia qual a outra forma de ser tirada do baralho — nada muito agradável. Ele chegou a dizer que o projeto seria desativado, e que era melhor mesmo que ela aceitasse a proposta da “licença médica” antes das demissões em massa e transferências. “Com a volta dos Democratas ao poder a nossa verba não está mais garantida” Nossa verba, nossa verba...
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Durante todo seu cinema mental Mary manteve-se calada, com a Dra. Sofia sentada a sua frente, fitando-a calmamente. O combinado era que ela não precisava falar, se não quisesse... Às vezes a Dra. fazia perguntas, talvez para não deixar a sessão em branco. Mas isso só nos dias em que Mary estava especialmente desanimada. Não era o caso hoje.
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— Foi você mesma quem decorou a sala?
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A Dra. levantou as sobrancelhas e sorriu orgulhosa.
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— Sim, fui eu mesma. Gosta?
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— Sim, bastante. E olha que não é fácil agradar-me, mas aqui me sinto muito tranqüila...
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— Eu uso do Feng Chui.
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“Sabia!”
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— Ah, é mesmo? (Pequena pausa) Ah, a China...
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— O que é que tem a China?
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— Os chineses... Eles queriam roubar o projeto...
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— Roubar o projeto? Como assim?
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— “Roubar o projeto” é modo de dizer. Eles eram nossos maiores inimigos, isso sim. Queriam por que queriam a proto-fórmula do Mendolatium. Mas não conseguiram... Pelo menos não enquanto eu fui diretora do departamento de segurança e anti-espionagem. (Mais uma pequena pausa) Doutora, você tem certeza de que tudo aqui fica apenas entre nós duas?
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— Claro, faz parte da ética profissional, eu já lhe disse isso.
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— Dra. Sofia, você já conferiu se a sua casa não possui escutas telefônicas?
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— Srta. Blaigdfield, o que conversamos sobre o seu complexo de perseguição? Eu já lhe disse que não estou ligada a este “projeto governamental” de que você tanto fala. Nunca conheci nenhum dos homens que você menciona e não existe nenhuma câmera em meu consultório! Ou estabelecemos uma relação de confiança ou não poderei continuar o meu trabalho. Serei obrigada a te indicar para alguma colega.
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— Desculpe-me. É apenas porque sinto que tudo o que tenho a dizer é irrevelável, e pode custar até mesmo a sua vida. Você não sabe os perigos de saber demais...
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— Claro que sei. Eu sou uma psiquiatra doutorada, estudei bastante na vida. Mary, por acaso já ouviu falar em Prometeu?
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— Russo?
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— Não, grego. — após uma pequena pausa, a psiquiatra prosseguiu — Olha, deixe para lá... Vamos falar sobre o Kentucky.
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— Ahn?!?!?!
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— Por que o susto, você não é do Kentucky?
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— Eu não quero falar sobre o Kentucky...
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— E por quê? Tem algo a ver com o seu passado?
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— Eu já disse que não quero falar sobre o Kentucky.
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— Ok, não precisamos falar sobre o Kentucky. Por que não me conta mais um dos seus sonhos. Achei que da última vez a experiência foi positiva.
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— Sim, qualquer coisa. Mas acho que não tenho sonhado muito ultimamente.
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— Tente se lembrar, Mary.
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Mary fechou os olhos lentamente, tentando concentrar-se.
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— Tem um sonho, sim. Não sei se foi esta noite, ou há dias atrás.
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— Conte-me o sonho.
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— Eu estou em um carro.
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— Dirigindo?
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— Não, estou no banco de trás.
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— Quem está dirigindo?
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— Ninguém está dirigindo.
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— Ninguém?
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— Ninguém, o carro está caindo. Balança muito. Eu não consigo sair. Estou presa. Lá fora, tudo roxo. Para fora da janela do carro. Sim, roxo! Mendolatium! Estou em uma espécie de rio de Mendolatium, caindo. Afundando com meu carro. Sem ter como sair.
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— E não consegue alcançar o Mendolatium?
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— Acredite, Dra. Sofia, eu não inalaria Mendolatium nem em sonho.
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— Então não gosta de Mendolatium?
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— Nem um pouco.
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— Então o sonho é pior do que imaginei a primeira vista.
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— É?
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— Sim, fora do vidro do carro, não existia a possibilidade de salvação, mas sim uma situação ainda pior. Ainda teremos de entender melhor o porque de você associar isso ao Mendolatium.
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— Por motivos nada obscuros, doutora. As razões são concretas, e dizem respeito ao projeto.
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— Sim, sim, entendo. Falaremos mais sobre isso na sua próxima seção, o seu tempo terminou.
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— Graças! — disse baixinho.
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— Como?
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Gracias, é "obrigado" em espanhol.
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— Ah, fala espanhol? Dessa eu não sabia, Mary. Veja, continue tomando os medicamentos como eu receitei. Se por acaso acordar de madrugada suando novamente tome mais uma da pílula vermelha, e se as convulsões começarem aplique a injeção rápido. Qualquer coisa, você tem o meu celular.
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As duas se despediram, Dra. Sofia ainda abriu a porta da sala para Mary, que saiu agarrada à própria bolsa, descendo as escadas do consultório.
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Ela é Mary Blaigdfield, e ela não quer falar sobre o Kentucky.
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sexta-feira, 20 de março de 2009

Contos de Mary Blaigdfield – a mulher que não queria falar sobre o Kentucky (parte III)

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Leões! Ela jamais gostou de leões. Eles não fazem nada! As leoas sim, essas trabalham, caçam, cuidam da prole. As leoas são as verdadeiras rainhas da floresta. É como num tabuleiro de xadrez: a rainha se matando na horizontal, na diagonal, para ganhar o jogo, e o rei não passa de um grande peão com honrarias. Ah, e sem falar que volta e meia fica em xeque, chamando a esposa para salvá-lo. Lamentável.
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Não, certamente a jaula dos leões não era a que mais a interessava. E havia tantas coisas interessantes para serem vistas ali. “Onde será o setor dos répteis?”, pensou olhando para uma placa. Ficou examinando.
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“Você está aqui.”
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“Não, quem está aí é essa bola amarela. Eu estou aqui, em frente à placa!”
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Não eram somente os leões que a incomodavam, o didatismo das placas de informações também.
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Uma coisa era fato: estava por demais estressada. E quando ela ficava estressada, tudo passava a ser um problema. “Tire alguns dias para você mesma” — disse Larie. “Não pode fazer mal a ninguém descansar um pouco”. Ela não entendia para quê! Para que perder tempo descansando, se ela estava ótima? As pessoas vêem problemas onde não existem.
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— Pipoca! Pipoca! Pipoca! — gritava um vendedor, passando com seu carrinho próximo à placa onde ela estava parada. Os gritos eram acompanhados de uma incessante música infantil, repleta de tons agudos. Irritante.
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“Será que quero pipoca?” — pensou. É, o programa não estaria completo sem pipocas.
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— Quanto é a pipoca?
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— Dois e cinqüenta a pequena, e quatro a grande.
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— Uma pequena, por favor.
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— Qual sabor?
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— Como? Sabor? — perguntou distraída.
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— É sabor! Natural, queijo, bacon, chocolate ou Mendolatium?
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Mendolatium! Por mais que já devesse ter se acostumado com aquilo, ainda parecia estranho. Se ao menos as pessoas soubessem de toda a verdade! Todo esse Mendolatium sendo consumido ao redor do planeta! Uma hora, as conseqüências irão vir à tona, mas aí, provavelmente já será tarde demais — pensava em questão de segundos.
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— Natural, por favor.
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Comprou um saquinho e foi-se em direção aos répteis. “Proibido alimentar os animais” estava escrito no saco, acompanhado de um desenho (riscado) de um homem dando pipoca aos macacos. Aquilo a irritou também.
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Era verdade. Ultimamente ela não andava nada bem. Também pudera, com as coisas caminhando daquela maneira. O tempo era cada vez mais escasso, e o seu segredo estava se espalhando. Não era à toa que estava estressada. Daí o motivo desse passeio dominical: pura e simplesmente relaxar.
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Mas a notícia estava se espalhando. Ela podia sentir. E o fato de ela não poder fazer nada, de ser obrigada a relaxar no meio disso tudo, a deixava ainda mais angustiada.
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Cruzou com uma família feliz. Ah... famílias felizes, elas existem! Isso a fazia lembrar a sua família, lembrar o passado. Lembrar o...
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— Mamãe, mamãe! Onde é que tá a girafa, mamãe?
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— Estamos indo para lá, filho! Você vai terminar sua pipoca ou posso jogar fora?
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Ela inevitavelmente prestou atenção e virou-se. Mirou aquele saco de pipoca. Pipocas roxas: Mendolatium! Como aquilo a torturava por dentro. Ver aquela criança inocente, metida no meio de tudo.
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“Todos são instrumentos! Todos!” Ela podia se lembrar exatamente de quando ouviu isso pela primeira vez, havia dez anos. Ela nunca tinha concordado com aquilo. Nunca foi a favor de envolver inocentes, que nada tinham a ver com o projeto.
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Ver aquela criança correndo ali na sua frente, cruzando o seu caminho, sabendo que havia ingerido Mendolatium a estava matando. A música cheia de agudos continuava entrando em seu ouvido e abalando a essência de seu ser — o pipoqueiro ainda estava por perto, certamente.
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Aquela situação estava cada vez mais insuportável! Ela atirou o saco de pipocas no chão e correu. Correu entre os visitantes, quase derrubando uns e outros. Algumas pessoas se assustaram e começaram a correr também. Com o clima tenso que havia se instalado depois da revelação das últimas notícias pelos jornais, era comum tal atitude. Em poucos minutos, uma situação de pânico generalizado tomou conta do local. Filhos se perdendo dos pais, animais gritando, pessoas correndo para todos os lados. Um ou outro segurança tentava acalmar as pessoas, mas era em vão. Latas de lixo eram derrubadas e os seus conteúdos esparramados pelo chão contribuíam com a atmosfera caótica. Vidros quebrados, gritos, choros de crianças.
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No meio daquela situação, ela era a única que sabia por que estava correndo, e sabia também que de nada adiantaria correr. Não havia para onde ir. Era necessário, antes de tudo, manter a calma. Manter a calma!
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Ela parou de correr. A respiração estava ofegante, o coração batia mais do que o peito podia agüentar. Ela se apoiou na barra da grade de uma jaula. Ficou ali parada, exausta. Eram tantos pensamentos vindo à sua cabeça!
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“Gruuuuuuuuuuu! Crupac! Crupac!”
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Um grito estridente soou para ela como uma lança no peito de um guerreiro já convalescido. Papagaios! Ela não precisava de mais isso: papagaios estridentes gritando no seu ouvido.
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Foi naquele momento que o inusitado aconteceu. Um grande absurdo do destino ou apenas parte de uma síncope nervosa? Ninguém sabe, mas foi quando o papagaio virou-se para Mary Blaigdfield e disse:
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— Eu sei! Crupac! Eu sei o que você fez no Kentucky! Crupac! Crupac!
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E o resto todos podem imaginar como foi. Naquela manhã de domingo Mary foi a cereja no grande bolo de caos que o Jardim Zoológico se transformou. Em meio à bagunça generalizada, poucos prestaram atenção em suas convulsões epiléticas-diarréicas. A não ser os papagaios, que embalaram o show agonizante de Mary com um emaranhado de gritos agudos, fazendo a carrocinha de pipocas parecer silenciosa.
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Ela é Mary Blaigdfield, e ela não quer falar sobre o Kentucky.
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quarta-feira, 18 de março de 2009

Contos de Mary Blaigdfield – a mulher que não queria falar sobre o Kentucky (parte II)

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O Café estava mais cheio naquela manhã, disso ela tinha certeza. E o clima do lugar estava diferente também. Uma atmosfera estranha no ar, pessoas que nunca havia visto ali, garçonetes novas. Tudo muito estranho, como um sinal de que algo de ruim estava prestes a acontecer.
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Ela caminhou por entre as mesas até chegar no seu cantinho preferido, sua mesa de sempre, e se deparar com uns estrangeiros ali sentados. Maldita imigração, maldita globalização — pensou, nervosa. Caminhou até o outro canto do Café e sentou-se em uma mesa qualquer.
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Por que o clima havia de estar diferente logo hoje? Justamente hoje, quando ela havia marcado um encontro tão importante naquele local, sempre tão pacato.
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Sentou no banco de couro vermelho e chegou bem perto do vidro da janela. Sempre gostou desse cantinho, desde pequena. Até hoje se lembra das brigas com o irmão quando os pais os levavam à lanchonete. Uma eterna luta pelo cantinho sem saídas e sem entradas, onde ela estaria segura e isolada. Vivendo no seu próprio mundo.
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Pediu um café bem forte para a garçonete e começou a se distrair olhando os carros passarem na rua. Carros de todas as cores, todos os tipos. Tantos carros, e ela não sabia nada sobre carros. Mas nem por isso deixava de se distrair vendo os carros passarem.
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— Mary Blaigdfield!
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Mary é sugada de volta ao mundo real assim que se deu conta de que alguém gritará seu nome. Era quem ela estava esperando.
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— Andrezza Pascuoletto!
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— Quanto tempo!
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— É, faz muito tempo realmente.
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— O seu cabelo está diferente.
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— É, eu cortei.
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— Ficou ótimo.
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— Obrigada. Sente-se.
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Andrezza Pascuoletto senta-se no banco em frente ao dela e também se arrasta até o cantinho, deixando a bolsa e a pasta do seu lado.
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— Este lugar é sempre assim?
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— Não, hoje está diferente, mais cheio. — respondeu Mary olhando ao redor — Mas, Andrezza, nós não combinamos de nos encontrar aqui para analisar o movimento da casa. O que você tem para me mostrar?
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Andrezza tira a pasta do banco e a coloca no colo. Começa a procurar algo. É interrompida pela garçonete trazendo o café de Mary. Pede um capuccino, e continua a procurar até tirar de dentro da pasta um envelope pardo, que coloca na mesa.
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— O que é isso? — pergunta Mary, enquanto adoça o seu café.
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— Fotos. Fotos mostrando o momento em que Larie Boferman aceita dez milhões de Yuri Guriskch no saguão de um hotel em Moscou.
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— Como você teve acesso a esse material?
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— Eu sou muito próxima de várias pessoas lá dentro. Tenho influências no projeto.
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— Isso não explica o fato de você ter tido acesso a esse tipo de material.
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— O que você queria que eu fizesse? Recusasse? Dissesse que não estava interessada neste tipo de informação? — Fala nervosa em um tom de voz mais elevado, beirando o choro.
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— Se acalme, alguém pode prestar atenção em nós.
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— Desculpe...
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— Algo me diz que não foram apenas as fotos que a levaram a marcar esse encontro. Tem algo mais a dizer?
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— Não... ...Quer dizer... ...Tenho sim...
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— Então diga logo, cada segundo que passa é um segundo a menos.
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— É sobre algo que uma fonte do projeto me informou. E diz respeito a você.
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— Como assim? — pergunta espantada.
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— É algo pessoal, mas, como sou sua amiga, me senti na obrigação de...
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São interrompidas pela garçonete deixando o capuccino na mesa. A garçonete se afasta e a conversa continua:
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— Andrezza Pascuoletto, ou a senhora vai direto ao ponto ou eu sou capaz de perder a cabeça!
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— Mary, eu vim aqui para conversar, para saber se você esta precisando conversar...
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— Sobre o quê!?!?
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— Sobre... sobre....
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— Sobre?????
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— Sobre o que ocorreu no Kentucky... Mas sinta-se à vontade, eu não quero forçar na.... — é interrompida pelo olhar de Mary Blaigdfield piscando incessantemente. Nos últimos momentos em que ainda pôde, ela balbuciou:
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— Eu... não quero... falar... sobre o Kentucky.
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É, naquele dia o café estava bem diferente mesmo, mas na verdade ninguém mais parou para prestar atenção nisso depois do show de horrores de Mary Blaigdfield. Convulsões, gritos de dor, histeria, tremedeiras, soluços. Dessa vez ela chegou a urinar nas calças em meio à tremedeira. Andrezza, assustada, se aproximou para ajudar.
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Brewewreerr.
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O grupo de turistas ficou horrorizado quando Andrezza Pascuoletto passou toda engosmentada de preto ao lado deles. Realmente o fedor era horrível.
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Ela é Mary Blaigdfield e ela não quer falar sobre o Kentucky.
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terça-feira, 17 de março de 2009

Contos de Mary Blaigdfield – a mulher que não queria falar sobre o Kentucky (parte I)

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Mary Blaigdfield dirigiu-se até a pia. Como suas mãos estavam sujas!, pensava, girando a torneira. Em milésimos de segundos, a água limpa e corrente se desmanchou pelos dedos sujos da mulher. Realmente estavam sujos.
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— Nada como uma boa água fresca para lavar as mãos, não? — disse ela em voz alta.
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— É, de fato, a água corrente retirará a maioria das impurezas das suas mãos. Se lavar com sabão, então exterminará a maioria dos micróbios e dos outros microorganismos. Mas, não pense que está cem por cento segura apenas por estar lavando as mãos... Muitas coisas resistem facilmente a uma simples lavada de mãos...
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— Como o quê, por exemplo?
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— Como... — A outra pessoa fez uma pausa, como se prestes a fazer uma séria revelação — pó nuclear...
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Naquele momento as mãos de Mary Blaigdfield, que até então se friccionavam, congelaram. Levantou os olhos lentamente até encarar a outra pessoa no reflexo do espelho.
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Mary ficou parada até que a outra pessoa lhe ofereceu uma toalha.
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Enquanto enxugava as mãos, perguntou com a voz séria:
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— Por acaso esta cidade já sofreu algum ataque com pó nuclear?
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— Isso foi há muito tempo. Antes do Larie Boferman, antes mesmo do Paul Mackning... As conjunturas eram outras e isso se deu naturalmente.
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— Por que você nunca me contou isso? — perguntou irritada.
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— Tínhamos medo da sua reação. A entrevista foi transmitida em rede nacional! Se você soubesse a verdade, poderia estragar tudo! O trabalho de anos.
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— Vocês me fizeram mentir para milhões de cidadãos, sem eu nem saber que estava mentindo?
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— Fizemos sim, mas foi pelo bem do projeto. Você precisa compreender.
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— Eu preciso compreender? — perguntou ironicamente — Eu preciso compreender é uma ova! Eu vou convocar a imprensa e informar toda a verdade.
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— Não Mary, você não vai. — retrucou em um tom de voz seco.
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— Vou, sim! Não vou levar esse peso nas costas pelo resto da vida!
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— Não Mary. Você não vai...
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— E posso saber por quê?
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— Porque, se você for, se você abrir a boca, revelaremos para todos os seres vivos desse planeta... — pausa — o que você fez no Kentucky.
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— Eu não quero falar sobre o Kentucky! Eu não quero falar sobre o Kentucky! Eu não quero falar sobre o Kentucky! — Mary Blaigdfield gritou, sofrendo naquele banheiro. Começou a se contorcer, lembrando-se do Kentucky. Contorceu-se até cair no chão, encolhendo-se. Enquanto passava a mão no chão, ela ia se enchendo de microorganismos novamente, todos sujos. Encolheu-se até ficar pequenininha. Pequenininha e vermelha, pois seu rosto parecia que ia explodir. Os grunhidos que sua garganta fazia eram verdadeiramente demoníacos. Sua pele pipocou em questão de segundos. Ela tremia, encolhida, cada vez mais rápido, em verdadeiras convulsões.
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Quando aquele sofrimento parecia estar chegando a um momento insuportável, um jorro de secreção negra e gosmenta saiu de sua boca. A partir de então, ela se acalmou como um casal após a cópula.
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Mary Blaigdfield ficou ali, como um verme, no chão do banheiro, envolta em sua secreção nojenta, repleta de imundos microorganismos.
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— Você precisará de muita água corrente agora... — e o outro foi embora impassível.
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Ela é Mary Blaigdfield e ela não quer falar sobre o Kentucky.
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quarta-feira, 4 de março de 2009

O sábio Kindâma

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para Walter Santa-Helena

I

Vinha o Rei Pându
feliz pelos campos
de flores cheirosas,
pois a primavera
cobria as montanhas.

Brilhantes botões
amarelos, onde
voavam abelhas
pretas. Atmosfera
fresca: sol e brisa.

Mádri, sua jovem
esposa que ia
ali adiante
com o sári de seda
(gentil, balançando)

cantava baixinho
só para si mesma
e, de vez em quando,
parava e colhia
uma flor, sorrindo.

O sol quente brilhou
bem por detrás dela,
no que o rei pensou:
“Mas como ela é bela!
E eu não posso tê-la...”


II

Ele aproximou-se,
e ela sorriu –
sua silhueta
era graciosa
contra a luz do sol.

Brotou de repente
uma sensação
de causa evidente:
já fazia anos
que a abraçara.

Deixando cair
no chão os legumes
que colheram juntos,
foi rumo à esposa
em grande alvoroço.

Imediatamente,
Mádri intuiu
os seus sentimentos.
Notando o desejo,
ela teve medo.

“Rei”, tentou dizer,
“controle a mente
se quiser viver!”
Levantou o braço,
fez não com a cabeça.


III

Porém o Rei Pându
ignorou de todo
aqueles avisos
e foi como um louco
ao não-permitido.

Abaixando os braços
abertos de Mádri,
ele os colocou
ao redor do próprio
corpo, com malícia.

E, desesperada-
mente, a princesa
tentou se livrar
dos braços do Rei
que, tomado, ria.

Caindo na grama
macia, os dois
sentiram-se livres,
vivos e sagrados,
assim como os bois.

A princesa presa
em seus braços firmes.
Ele a apertava
forte contra o solo.
Boca atrás de boca.


IV

De súbito, ele
sentiu em seu peito
uma dor terrível.
Tossindo sem ar –
um grito abafado.

Com Mádri ao lado,
Rei Pându deu seu
último suspiro
e então morreu,
deixando essa vida.

“Oh!”, Mádri gritava.
Também soluçava,
não podia crer.
Em vão balançava
o corpo do Rei.

Era muito tarde
para qualquer coisa:
era a maldição
do sábio que tinha,
enfim, se cumprido.

Tentar procriar
estava proibido,
o Rei muito bem
que sabia disso
(mas não deu ouvidos).


V

Muitos anos antes,
caçando entre as árvores,
Rei Pându flechara
acidentalmente
o sábio Kindâma

que tinha tomado
forma de um veado
e ia gerar
um filho na esposa.
Para libertar

Pându de seu karma,
O sábio disse ao
Rei que se algum dia
tentasse ter filhos,
ele morreria.

Foi por isso que
ele decidiu
nunca fazer sexo,
viver uma vida
como a dos ascetas.

É essa a história
do Rei que partiu
deixando para trás
suas duas esposas
e os seus cinco filhos.
.

segunda-feira, 2 de março de 2009

EX

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Quadro?
Esquadro!
(Quesito esquisito)
Preguiça?
Espreguiça!
(Mero esmero)
Mola?
Esmola!
Marido: ex-marido.
Mulher: ex-mulher.
Ta dual?
Estadual!
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