sábado, 21 de março de 2009

Contos de Mary Blaigdfield – a mulher que não queria falar sobre o Kentucky (parte IV)

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A Dra. Sofia era realmente uma pessoa sofisticadíssima. Seu consultório parecia decorado de tal maneira que o paciente se sentia compelido a falar, a se abrir, a trabalhar as lembranças e emoções de forma tal, que o resultado era sempre revelador. Ela deve seguir o Feng Chui, ou alguma outra filosofia milenar de arrumação de móveis, pensava Mary Blaigdfield recostada no divã. A escolha dos quadros, das cores, o elefantinho com o traseiro para a porta, a abundância de flores, tudo parecia escolhido a dedo.
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Sim, finalmente Mary Blaigdfield aceitara que precisava de ajuda, qualquer tipo de ajuda. Todos haviam insistido muito que era necessário se tratar. Ela ainda podia lembrar-se de Larie Bofferman em sua sala como se estivesse acontecendo agora mesmo, seu rosto listrado de sobra e luz pela persiana: “A psiquiatra será totalmente paga pelo projeto, não se preocupe. Tentarei enquadrar você no caso dos feridos de guerra. Você sabe, Mary, com todos os benefícios que isso poderá representar para a sua aposentadoria...” Eles estavam insistindo para que ela se aposentasse! Mary, entendeu logo o que estava se passando e aceitou jogar o jogo deles. Era o melhor a fazer, até porque, ninguém melhor do que ela sabia qual a outra forma de ser tirada do baralho — nada muito agradável. Ele chegou a dizer que o projeto seria desativado, e que era melhor mesmo que ela aceitasse a proposta da “licença médica” antes das demissões em massa e transferências. “Com a volta dos Democratas ao poder a nossa verba não está mais garantida” Nossa verba, nossa verba...
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Durante todo seu cinema mental Mary manteve-se calada, com a Dra. Sofia sentada a sua frente, fitando-a calmamente. O combinado era que ela não precisava falar, se não quisesse... Às vezes a Dra. fazia perguntas, talvez para não deixar a sessão em branco. Mas isso só nos dias em que Mary estava especialmente desanimada. Não era o caso hoje.
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— Foi você mesma quem decorou a sala?
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A Dra. levantou as sobrancelhas e sorriu orgulhosa.
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— Sim, fui eu mesma. Gosta?
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— Sim, bastante. E olha que não é fácil agradar-me, mas aqui me sinto muito tranqüila...
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— Eu uso do Feng Chui.
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“Sabia!”
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— Ah, é mesmo? (Pequena pausa) Ah, a China...
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— O que é que tem a China?
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— Os chineses... Eles queriam roubar o projeto...
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— Roubar o projeto? Como assim?
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— “Roubar o projeto” é modo de dizer. Eles eram nossos maiores inimigos, isso sim. Queriam por que queriam a proto-fórmula do Mendolatium. Mas não conseguiram... Pelo menos não enquanto eu fui diretora do departamento de segurança e anti-espionagem. (Mais uma pequena pausa) Doutora, você tem certeza de que tudo aqui fica apenas entre nós duas?
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— Claro, faz parte da ética profissional, eu já lhe disse isso.
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— Dra. Sofia, você já conferiu se a sua casa não possui escutas telefônicas?
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— Srta. Blaigdfield, o que conversamos sobre o seu complexo de perseguição? Eu já lhe disse que não estou ligada a este “projeto governamental” de que você tanto fala. Nunca conheci nenhum dos homens que você menciona e não existe nenhuma câmera em meu consultório! Ou estabelecemos uma relação de confiança ou não poderei continuar o meu trabalho. Serei obrigada a te indicar para alguma colega.
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— Desculpe-me. É apenas porque sinto que tudo o que tenho a dizer é irrevelável, e pode custar até mesmo a sua vida. Você não sabe os perigos de saber demais...
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— Claro que sei. Eu sou uma psiquiatra doutorada, estudei bastante na vida. Mary, por acaso já ouviu falar em Prometeu?
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— Russo?
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— Não, grego. — após uma pequena pausa, a psiquiatra prosseguiu — Olha, deixe para lá... Vamos falar sobre o Kentucky.
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— Ahn?!?!?!
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— Por que o susto, você não é do Kentucky?
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— Eu não quero falar sobre o Kentucky...
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— E por quê? Tem algo a ver com o seu passado?
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— Eu já disse que não quero falar sobre o Kentucky.
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— Ok, não precisamos falar sobre o Kentucky. Por que não me conta mais um dos seus sonhos. Achei que da última vez a experiência foi positiva.
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— Sim, qualquer coisa. Mas acho que não tenho sonhado muito ultimamente.
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— Tente se lembrar, Mary.
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Mary fechou os olhos lentamente, tentando concentrar-se.
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— Tem um sonho, sim. Não sei se foi esta noite, ou há dias atrás.
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— Conte-me o sonho.
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— Eu estou em um carro.
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— Dirigindo?
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— Não, estou no banco de trás.
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— Quem está dirigindo?
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— Ninguém está dirigindo.
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— Ninguém?
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— Ninguém, o carro está caindo. Balança muito. Eu não consigo sair. Estou presa. Lá fora, tudo roxo. Para fora da janela do carro. Sim, roxo! Mendolatium! Estou em uma espécie de rio de Mendolatium, caindo. Afundando com meu carro. Sem ter como sair.
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— E não consegue alcançar o Mendolatium?
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— Acredite, Dra. Sofia, eu não inalaria Mendolatium nem em sonho.
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— Então não gosta de Mendolatium?
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— Nem um pouco.
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— Então o sonho é pior do que imaginei a primeira vista.
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— É?
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— Sim, fora do vidro do carro, não existia a possibilidade de salvação, mas sim uma situação ainda pior. Ainda teremos de entender melhor o porque de você associar isso ao Mendolatium.
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— Por motivos nada obscuros, doutora. As razões são concretas, e dizem respeito ao projeto.
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— Sim, sim, entendo. Falaremos mais sobre isso na sua próxima seção, o seu tempo terminou.
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— Graças! — disse baixinho.
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— Como?
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Gracias, é "obrigado" em espanhol.
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— Ah, fala espanhol? Dessa eu não sabia, Mary. Veja, continue tomando os medicamentos como eu receitei. Se por acaso acordar de madrugada suando novamente tome mais uma da pílula vermelha, e se as convulsões começarem aplique a injeção rápido. Qualquer coisa, você tem o meu celular.
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As duas se despediram, Dra. Sofia ainda abriu a porta da sala para Mary, que saiu agarrada à própria bolsa, descendo as escadas do consultório.
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Ela é Mary Blaigdfield, e ela não quer falar sobre o Kentucky.
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